O caminho de Regina
Dia 27 de abril. Regina sai às 11h da Vila Carlota em Viamão, vai até o centro da cidade e se dirige a Porto Alegre. Caminha cerca de cinco horas tendo comido apenas algumas bolachas encontradas no lixo. O que a move a fazer essa jornada é um só motivo: a luta pela sobrevivência.
Quando encontro Regina nesse mesmo dia, por volta das 21h, ela está preparada pra dormir na frente do Unibanco, localizado na Rua Andradas. O lugar em que vai se deitar está protegido com pedaços de papelão, que servem como cama. A noite está fria,e Regina possui somente um pequeno pano, com o qual cobre os pés. Apesar da situação em que se encontra, ela se arruma. Suas unhas estão pintadas com um esmalte já envelhecido e faz tranças no cabelo.
Com 52 anos, Regina vai dormir na rua. O mais estranho, porém, é que ela diz possuir uma casa, que sabe precisar onde fica: rua 48, número 439, Vila Carlota em Viamão. Foi de lá que afirma ter saído no final da manhã em busca de esmolas e de comida. Sem ter como se alimentar, vai até Porto Alegre com a esperança de encontrar mais do que as migalhas que come do lixo de sua cidade. Várias vezes, sem obter sucesso na tentativa de carona em ônibus, ela faz esse caminho. Já chegou a desmaiar de fome. Em uma ocasião, diz ter caído e agonizado tanto, que sua boca expeliu uma água esverdeada, restos da única refeição que havia feito naquele dia: salada verde tirada de uma lixeira.
Casa e família
A necessidade de procurar meios de sobrevivência, no entanto, não é recente. Desde que o marido a abandonou com quatro filhos, Regina tem dificuldades para garantir o seu sustento. O antigo companheiro, que já a bateu, não é alvo de críticas, pois nunca a tinha deixado passar fome. Porém, a estabilidade que acreditava possuir estando casada foi dissipada quando, há cerca de 26 anos, ele avisou que estava saindo para ir à venda e nunca mais voltou.
A casa onde morava na época foi, aos poucos, sendo despovoada. Depois da saída do marido, por falta de alimento e sem emprego, o desespero a fez dar os filhos. Como mãe, declara que essa era a única atitude a ser tomada, já que não existia a menor possibilidade de sustentá-los e, por isso, não sente saudade e nem remorso por tê-los dado. Os mais velhos, ambos meninos, ela entregou para seus pais. As duas meninas ainda continuaram um pouco mais em casa, porque ninguém aceitava cuidar de mulheres. Mais tarde, uma delas casou com apenas 14 anos e a outra foi aceita pelos avós.
Regina, sem encontrar alternativa, deixou o lar e foi esmolar nas ruas, chegando a ficar mais de sete meses ininterruptos dormindo na Marechal Floriano Peixoto, esquina com Jerônimo Coelho, de onde diz ter sido retirada pela polícia. A antiga moradia foi vendida pelo irmão Luís.
O dinheiro que o irmão ganhou com a venda da casa, usou para construiu um barraco em um terreno que o pai cuidava. Mas Luís não o usava, pois morava em outro local. O pai fez uma “maloca” - como descreve sua atual casa - pra ela nos fundos do mesmo terreno e, há cinco anos, mesmo saindo e dormindo algumas noites na rua para pedir alimentos, Regina tem um teto.
Entretanto, quatro meses atrás, o irmão foi morar no terreno com uma amante e não a aceita morando nos fundos. Devido às brigas, Regina não consegue ficar em casa. A porta de sua maloca está sem fechadura e, frequentemente, vizinhos e familiares entram e roubam até mesmo os restos de arroz e de feijão que ela junta do lixo e leva para aquecer no velho fogão de duas bocas que ainda resiste aos assaltos.
Internação
Abandonada por todos, apesar de não assumir, percebo que Regina sofre pela falta de amor de seus familiares. Com um misto de raiva e de tristeza no olhar, ela fala sobre as duas vezes que seu pai a mandou para o hospício. O relato, em certos pontos, é furioso e ela passa a se referir à figura paterna como a de um louco.
As internações, primeiro de três semanas no Hospital Espírita e depois de um mês no Hospital São Pedro, a fazem tremer. Nesse último período, a medicação que davam a fez ficar com as mãos e a boca tortas e, ainda, a fez espumar pela boca. Essa estadia no hospício quase a matou e ela demorou um ano para se reabilitar.
Após cerca de uma hora de conversa, despeço-me de Regina. Ela me explica que pretende ficar na rua até primeiro de maio, dia em que acredita já ter conseguido, além da comida, dinheiro suficiente para fazer a carteira de identidade, que lhe haviam roubado. Combino, então, um novo encontro no dia seguinte pela tarde, agora na rua Marechal Floriano Peixoto, onde ela diz que vai estar esmolando.
No dia combinado, logo que chego para conversar, por volta das 16h, vejo no rosto de Regina um sorriso radiante. Isso tudo porque tinha feito uma refeição com o dinheiro que arrecadou na rua. Um pastel e um refrigerante do bar da esquina onde esmola são os motivos da alegria. Além disso, ela mostra bananas, biscoitos, maçã e uma lata de coca-cola que ganhou nas ruas. Hoje a fome não a atormentará.
Sobrevivência
Nosso papo continua e, aos poucos, descubro outros detalhes da vida de Regina. Após a separação, ela teve mais cinco filhos, todos de pais diferentes. E se desfez de todos. Eles foram a forma que encontrou de ter emprego, pois somente quando estava grávida, ela os conseguia.
Na última gestação, porém, - há quinze anos - a barriga não sensibilizou as pessoas a darem trabalho para ela. Sem comida, alimentava-se das frutas podres jogadas perto das fruteiras do centro. Em uma sacola de plástico, juntava, uma a uma, do chão e, em casa, tentava separar as parte estragadas das partes boas. E isso a manteve em pé para dar à luz ao seu nono filho, uma menina.
Fico curiosa para saber sobre a infância de Regina. Ela diz não se lembrar muito desse tempo, somente das surras do pai e das poucas conversas com a mãe. A palavra que usa para definir a família é esculhambada. Os pais sempre dormiram em camas separadas. Desde pequena se lembra de vagar pelas ruas, depois que seu pai a expulsava de casa. Afirma não ter nenhuma saudade dos tempos em que morava com eles e com os três irmãos, pois nunca foram bons. Seus familiares são como estranhos. Apesar de os ver com certa frequencia, não tenta estabelecer nenhum tipo de diálogo, porque sempre tudo termina em brigas, gritarias e xingamentos.
Vozes da fome
Nesse segundo encontro, a lucidez de Regina, antes tão evidente para mim, parece se esvair. O discurso começa a se tornar confuso e ela passa a mostrar sinais de que se sente, constantemente, perseguida e vigiada.
Descubro que, além das duas vezes que o pai a mandou para hospício, ela teve outra passagem rápida - de três semanas - no Hospital Espírita. Sem saber dizer quando isso ocorreu, conta que estava na rua e duas mulheres passaram. De repente, uma começou a gritar que Regina tinha batido nela e, em seguida, já havia chegado a polícia. Logo após, chegou a equipe do hospital, que a amarrou e a internou.
O curioso dessa história, porém, é o fato de Regina insistir que não bateu, mas que alguém a fez dar um empurrão na mulher, como se existisse uma “força” que a levasse a tomar tais atitudes. E é essa mesma “força” que ela diz ser culpada por a fazer engravidar cinco vezes depois do término do casamento.
Já não consigo compreender bem e nem acompanhar tudo o que Regina relata. Ela conta que a sua vida é dividida entre claro e escuro. Em alguns momentos, fica imersa em uma escuridão, que não a deixa enxergar e nem ouvir. Isolada do mundo, não sabe nada que está acontecendo. Porém, o claro a conduz à normalidade. As vozes de seus familiares e de seus vizinhos a acompanham. Mesmo invisíveis, ela os escuta e eles não a deixam comer.
A fome, tão presente no primeiro dia de nossa conversa, já não existe mais. Ela agora diz que, mesmo quando fica um dia inteiro sem comer, não sente isso. Já desmaiou por não ter comido, mas o que para mim fica evidente como sendo a fraqueza pela falta de nutrientes, ela explica de outra forma. Um buraco em sua barriga começa a se abrir e vai aumentando gradativamente, até que um espírito a derruba no chão.
Sobre os restos que já pegou do lixo em Viamão, diz que nada fez mal à saúde. A boca tem uma enorme ferida, que ela atribui a um chocolate dado por uma moça, mas nunca às comidas que encontra.
A nossa conversa, novamente, chega ao fim. Regina diz que estará me esperando no dia seguinte. A minha idéia é encontrá-la até ela voltar para Viamão. No entanto, quando chego na rua Marechal Floriano, não há nenhum sinal de Regina.
Procuro pelos arredores, vou até a frente do Unibanco na Andradas, onde a encontrei pela primeira vez, mas ela já não está mais. Talvez tenha voltado para casa. Ou talvez, mais uma vez, alguém a tenha tirado das ruas para levá-la a um hospício qualquer. A única certeza que tenho é que Regina não está mais lá.
Torço para que ela tenha saído das ruas por ter conseguido comida e dinheiro antes do tempo previsto, primeiro de maio. Torço para que o buraco que se abre em sua barriga possa um dia ser fechado. Torço para que Regina possa, pelo menos, fazer o que parece tão simples para nós: comer todos os dias.