quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Um escritor na pior


Quando ainda era apenas Eric, um jovem indiano membro da polícia britânica na Birmânia, larga o emprego, devido ao ódio que criou pelo imperialismo, e decide seguir a carreira literária. Para isso vai à Paris e, desempregado, hospeda-se em um hotel pra lá de duvidoso, que ao invés de cinco estrelas, tem é uma centena de percevejos. Decidido a retratar o universo dos excluídos, o aspirante a escritor passa a viver nesse lugar, e a buscar alternativas de emprego no submundo. E é assim que nasce o pouco conhecido “ Na Pior em Paris e Londres”, o livro que lançou Eric Arthur Blair sob o pseudônimo de George Orwell, um dos maiores escritores do século XX.

Muito se fala sobre a Revolução dos Bichos e sobre 1984, mas quase nada é dito sobre essa obra. Escrita no final dos anos de 1920 foi rejeitada por diversas editoras, até ser lançada em 1933. O motivo principal da rejeição era o assunto pouco bonito e o modo como Orwell descreveu a pobreza e refletiu sobre ela, utilizando uma linguagem chula para a época, valendo-se de ironias e chocando a muitos com as críticas ferrenhas destinada às classes mais bem nutridas.

A não-ficção de Orwell, que mistura narrativa documental e jornalística com as técnicas e a linguagem literárias, começa em Paris. O escritor se aloja em um hotel barato da Rue du Coq d'Or e se propõe não só observar a pobreza, mas a vivenciá-la, conhecendo os moradores da rua pobre, fétida e barulhenta da capital francesa. Aos poucos, são apresentados aos leitores vários personagens desse ambiente. Figuras excêntricas, como Charlie, um jovem de 22 anos que discursa sobre suas experiências amorosas e gasta o pouco que tem em bordéis e bistrôs, ajudam a descortinar o universo que pretende revelar.

Depois de ter gasto quase todo o dinheiro e sem os bicos de professor de inglês que costumava conseguir, o narrador se depara com a falta de recursos, de moradia e com a fome. Começa a penhorar as roupas, a pular de um hotel a outro e a procurar emprego junto a um amigo russo, antigo garçom. Passa, então, a trabalhar como lavador de pratos de hotel, em uma rotina frenética de 15 horas diárias em cozinhas sujas, exercendo atividades automáticas e subumanas. É nesse momento que ele faz uma análise sobre essa função – os escravos do mundo moderno. Traz, ainda, idéias que expressam a sua veia socialista e questiona a utilidade da profissão que exerce, algo desnecessário que existe para agradar e dar luxo aos ricos.

Após tentar a sorte em Paris, sem nenhum êxito, Orwell retorna à Inglaterra devido a uma proposta de emprego. Ao chegar lá, porém, nada sai como planejado. O trabalho esperado não sai, o dinheiro acaba e ele se vê em uma situação ainda mais perto da degradação: passa a viver como mendigo. É em Londres que o autor dorme ao relento, em albergues públicos e privados, faz amizade com moradores de rua e conhece o modo como esses conseguem ludibriar a lei do país que criminaliza a mendicância. Conhece e descreve a saga desses homens que precisam pular de alberque em alberque, por causa dos horários e das restrições de vezes que podem dormir em cada um. Retrata a procura diária por algo para comer, dependendo da caridade de igrejas e instituições, das quais possuem uma repulsa exagerada, e mostra, ainda, a desagradável dieta de uma xícara de chá e de duas fatias de pão com margarina a que estão sujeitos.

O primeiro mendigo que Orwell, realmente, conheceu bem foi Paddy, um tipo característico dos milhares que vivem na Inglaterra. Jovem de 35 anos, desempregado há dois, cheio de sentimento de autopiedade. Como muitos outros, os assuntos que conversa são a vergonha e a ruína de ser mendigo e a melhor maneira de conseguir uma refeição. Ele incorpora as peculiaridades dos excluídos, vivendo sem futuro e planos, subnutrido e já sem nada que o fizesse pensar além de o que comer e onde dormir, limitado em suas perspectivas pela vida desumana que leva.

Uma das figuras mais interessantes do livro é Bozo. Diferente dos outros retratados pelo narrador, esse homem – um grafiteiro de calçada – reflete sobre sua condição, sobre a política e sobre o mundo que está a sua volta e têm, até mesmo, noções básicas de astronomia. Lê jornais e faz charges críticas sobre acontecimentos atuais, considerando-se acima dos mendigos. A autocomiseração, para ele, não existe, pois havia construído uma filosofia própria que dizia não se importar de viver na rua, desde que não estagnasse, pensando somente em o que comer e em catar baganas caídas do chão. Para ele, era possível pensar, refletir, filosofar e ser feliz, mesmo sem dinheiro. Apesar de exercer sua atividade como pretexto para esmolar, via-se como um artista.

Essas são algumas das histórias que constroem a narrativa de Orwell. Na pior em Paris e em Londres é permeado de reflexões lúcidas e, ao mesmo tempo, chocantes: “Quando você se aproxima da pobreza, faz uma descoberta que supera algumas outras. Você descobre o tédio, e as complicações mesquinhas e os primórdios da fome, mas descobre também o grande aspecto redentor da pobreza: o fato de que ela aniquila o futuro”. O autor descarta o distanciamento e o ar de superioridade, imerge na realidade que quer contar. Sem preconceitos, que aliás ele afirma ter perdido depois de conhecer o modo de vida dos pobres e mendigos, ele vai tentando se desfazer das idéias do senso-comum. Não aceita a visão dominante das classes médias e altas sobre essas pessoas e questiona o porque da existência dos excluídos, ao invés de tratá-los apenas como vagabundos e malandros.

Nas 245 páginas que o compõe, o livro tem a brilhante capacidade de familiarizar o leitor com o ambiente que retrata, de fazê-lo, nem que somente nos momentos de leitura, pensar no outro. E esse outro ele apresenta, mesmo sob condições degradantes, como um igual a qualquer um, separado apenas pela hierarquia social. Alguém com solidariedade imensa, capaz de dividir o único pedaço de pão que terá para comer durante o dia com aquele que não tem nada.

Talvez o mais triste de se constatar ao ler essa obra é que, após mais de oitenta anos, ela continua atual. Até hoje, a sociedade se mostra incapaz de absorver os excluídos do sistema capitalista. O que George Orwell afirmava a respeito da indiferença e da ignorância dos cultos e intelectuais em relação aos indigentes – os que ,teoricamente, deveriam ser os mais conscientes a respeito dessa situação- ainda persiste. Ao desconhecerem e estarem distante da realidade dessas pessoas, as classes mais altas se consideram superiores e, também, oprimem e rejeitam a plebe, com medo de que a liberdade dela possa ameaçar o seu bem-estar.

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