Na década de 1970, com a crise do petróleo, uma das alternativas encontradas pelo governo federal foi incentivar o uso da bicicleta. O Grupo Executivo de Integração da Política de Transportes - Geipot – surgido em 1965, deu origem a Empresa Brasileira de Transporte Urbano (EBTU),ambos já extintos. O órgão foi criado com a ajuda do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e fez diversos trabalhos a fim de melhorar o transporte coletivo e de diferentes modais.
Dentro da prefeitura de Porto Alegre, o resultado do incentivo federal foi a elaboração de um plano diretor cicloviário em 1981 pela Secretaria do Planejamento Municipal. Esse trabalho desenvolveu projeto de uma rede com cerca de 160 quilômetros de ciclovia. Previa também a implantação de locais de apoio durante o trajeto, com borracheiro e bomba para calibragem dos pneus, e bicicletários nos pontos de ônibus. Abrangia ciclovias que atendessem a trabalhadores e estudantes, mas também atividades de lazer. Porém, nunca saiu do papel.
Na década de 1990, quando a prefeitura decidiu construir a III Perimetral, entidades de ciclistas e pessoas ligadas ao movimento ecológico pressionaram para que esse projeto incluísse a construção de uma ciclovia, já que o motivo da não implantação era sempre a dificuldade de mudar um ambiente urbano já consolidado. A necessidade de fazer um corredor de ônibus para conseguir verbas de financiamento federais deixou novamente a reivindicação de fora. Só em 1996, pela pressão dos cicloativistas, que o BIRD, financiador da III Perimetral, decidiu incluir no projeto um plano diretor cicloviário. Sob responsabilidade da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, as tentativas fracassaram. No governo do prefeito José Fogaça, o encargo passou para a secretaria de mobilidade urbana, através da EPTC. E em 2009, o plano cicloviário foi aprovado como lei complementar, parte integrante do plano diretor maior da cidade.
A proposta de 1981 serviu como ponto de partida para a elaboração do atual PDCI, que iniciou em 2005. Um consórcio com três consultorias de trânsito especializadas em transporte foi realizado para fazer sua elaboração. Junto a elas, trabalharam um grupo formado por dois representantes da EPTC, um da área de transporte e outro de trânsito, e membros das secretarias municipais de planejamento, de gestão, de obras e de meio ambiente.
O arquiteto e urbanista da EPTC, Régulo Ferrari, coordenador do PDCI, afirma que a resistência interna era o maior empecilho para a aprovação de um projeto como esse. “Aqui na secretaria dos transportes, o pessoal dizia que Porto Alegre não tem clima propício para andar de bicicleta. Chove muito, é muito frio no inverno, muito quente no verão, e não tem topografia adequada porque tem muita lomba. Um colega em uma viagem pra Alemanha fotografou uma mulher andando de bicicleta rebocando um carrinho de bebê embaixo da neve. O principal mesmo é a resistência das pessoas. Quando se faz uma ciclovia está tirando espaço ou do pedestre ou do automóvel. Nossas ruas são estreitas, nossa estrutura viária é bem ruim, então acho que o principal era isso. Pra gente conseguir fazer alguma coisa é bem difícil.”
A realização do plano contou, primeiramente, com estudos sobre a demanda atual e a projetada, além da indicação das áreas com maior concentração de usuários da bicicleta e do perfil desses. A partir de pesquisa de origem e destino feitas por entrevista domiciliar em 2003, estimou-se que eram realizadas cerca de 15 mil viagens diárias de ida e volta com bicicleta, o que corresponde a 7 mil usuários do modal. Em 2006, outra consultoria fez a atualização dos dados, através do mesmo método, acrescentando a contagem e a entrevista nas ruas, o que totalizou 15 mil ciclistas. O arquiteto salienta,entretanto, que o projeto não foi feito com o objetivo de suprir uma demanda. “A gente não está trabalhando em cima de uma demanda existente , como quando trabalha com transporte coletivo. Estamos fornecendo uma infra-estrutura para que as pessoas possam usar e mais gente passe a optar pela bicicleta.”
Apesar da atual falta de infra-estrutura, o estudo mostrou que existe um crescimento dos deslocamentos com bicicleta. A demanda que usa essa modalidade de transporte para ir ao trabalho é concentrada sobretudo na zona sul e norte e é formada, em sua maioria, por pessoas de baixa renda e nível de instrução que utilizam a bicicleta como alternativa frente ao ônibus. Na orla do Guaíba se concentram os que usam o veículo para lazer ou para treinamento esportivo. E os estudantes de ensino fundamental e médio das escolas públicas da zona norte e sul representam um universo significativo entre os usuários.
A malha cicloviária do PDCI abrange 495 quilômetros, e aponta todos os lugares em que seria viável uma ciclovia. No momento da escolha desses locais, o levado em conta foi a existência de uma rede que, realmente, cobrisse toda a capital. Como no traçado da cidade não existem vias alternativas, as ciclovias são previstas para serem construídas na malha viária principal e somente onde não há corredores de ônibus. Além disso, a EPTC estimou os custos do investimento, que seriam de 250 a 300 mil reais por quilômetro, já considerando a necessidade de possíveis obras de drenagem e de conserto nas vias para que possam receber a infra-estrutura adequada.
Em cima da demanda existente, o grupo responsável pelo plano fez uma projeção por meio de pesquisa de preferência declarada. “ A projeção seria assim: se nós tivermos uma rede que cobre todo o município, que dá para andar com segurança, quantas pessoas poderiam usar daqui a 15 anos - o horizonte do projeto. A gente chegou a conclusão de que dariam umas 300 mil viagens por dia. Em 15 anos multiplicar por 10 essa marca seria excepcional.”
Durante a elaboração do plano se teve a preocupação de saber quais eram os lugares prioritários para colocar a ciclovia e, além de indicá-los, foi incluído um projeto de engenharia para eles. “A Restinga é uma das zonas que já é muito usada a bicicleta e demonstra no futuro que seria mais utilizada ainda. Para selecionar quais ciclovias iam ser feitas primeiro consideramos isso. Foram escolhidas algumas pequenas redes dessa malha que cobre toda a cidade e a gente fez a seleção em cima de uma série de critérios. Um deles é a demanda potencial e na Restinga, assim como na Zona norte, o pessoal usa bastante porque são zonas que é fácil andar de bicicleta. Na Restinga ,especialmente, tem muita via larga e asfaltada, e nós fizemos a ciclovia justamente no lugar onde existem mais acidentes, que é a avenida principal. Ela é mais estreita e já tem o tráfego bem mais intenso.” As outras prioridades são: A Avenida Ipiranga, da orla do Guaíba até a PUC com cerca de sete quilômetros – que deve ser licitada nesse ano - e a Avenida Sertório e Assis Brasil, na zona norte, com 7.800 metros – com a estimativa de término da revisão do projeto para o ano que vem. A da Restinga, já quase terminada, está sendo construída com verbas municipais e as outras duas também serão feitas pelo poder público sem nenhum tipo de financiamento.
Régulo chama atenção para a possibilidade de mudanças nessas escolhas. “A gente tinha idéia, quando encomendamos o trabalho, de ter um plano de prioridades, uma definição de investimentos e a partir daí a gente brigaria, a câmara dos vereadores talvez nos desse força, mas na verdade não é assim que acontece.” Ele salienta que as obras acontecem muito mais por questão de prioridade e, hoje a EPTC já está trabalhando diferente. “A gente vai construindo essa rede aos poucos e determinadas prioridades vão acontecer muito em função do que já foi feito. De repente tem um aumento do número de ciclistas em uma determinada área porque foi feita uma ciclovia, então a gente vai ter necessidade de fazer conexões em função, justamente, do aumento da demanda.” Outra prioridade que tem aparecido é a da Copa, que prevê a instalação de 40 quilômetros de ciclovia até 2014 na Avenida Edvaldo Pereira Paiva.
A lei complementar também define que essas construções, para além do investimento público, poderão ser feitas com parcerias privadas, através de contrapartida ambiental, e trata da exigência de bicicletários em grandes empreendimentos. “ Colocamos na lei, que foi pra câmara dos vereadores, que determinados empreendimentos novos tem que ter uma quantidade de vagas de bicicletas proporcional a de estacionamento de automóveis.” Régulo ainda fala da importância da participação do setor privado. “ É feito um estudo de impacto ambiental quando vai se aprovar empreendimento. Surgiu uma idéia bem interessante, é uma contrapartida pra cidade pela poluição que o estabelecimento está gerando. Pra cada 100 vagas de estacionamento, o empreendimento constrói um quilômetro de ciclovia, que não precisa ser necessariamente próximo onde ele está instalado.” Devido a essa lei, o arquiteto acredita que daqui há alguns anos Porto Alegre conseguirá tirar os projetos do papel. “Mas essas contrapartidas todas são negociadas pelos empreendedores com a prefeitura. Eu espero que da maneira que ficou escrito não seja flexibilizado, mas a gente nunca sabe”, desabafa.
Uma deficiência do projeto é não especificar verbas para a educação. Ao oferecer uma infra-estrutura para o uso da bicicleta, é preciso conscientizar o ciclista sobre as regras de trânsito que deve obedecer. Além disso, é necessário preparar o restante da população para receber a bicicleta no tráfego. Quanto a isso, Régulo afirma que “ deveria prever verbas exclusivas pra educação no trânsito, mas temos um certo vício, somos engenheiros,arquitetos. Nós temos uma série de medidas que precisam ser tomadas a nível de educação de trânsito, conscientização de motorista e pedestre, educação ambiental. Eu imagino que elas vão ser desencadeadas quando ficar pronta a ciclovia da Restinga.”
Outra medida do projeto que está vaga é a construção de bicicletários públicos. Apesar de existir a idéia de se fazer parcerias com o Trensurb e de colocar esses guardadores em lugares estratégicos, como os pontos de ônibus, ainda nada foi definido. Quanto às críticas sobre a localização de algumas ciclovias, Régulo diz que é preciso começar a fazer por partes e isso gera vias que não estão conectadas a lugar nenhum.“Não dá pra fazer tudo ao mesmo tempo, se olhar o mapa do plano, as que estão sendo feitas estão dentro de uma rede. Se não fizer aos poucos a gente não faz nunca. Foi o que aconteceu, tinha um plano em 1981 e até 2000 e pouco não foi feito nada ainda.”
O presidente da Associação Ciclística da Zona Sul, Paulo Roberto Alves, afirma que a demora na execução do plano é preocupante. “O plano nos contenta, mas ele está muito devagar. A prefeitura deveria fazer pelo menos dez quilômetros de ciclovia por ano. É uma estimativa que nós da associação fizemos para que em 15 anos nós tenhamos 150 quilômetros de ciclovia que liguem todos os bairros de Porto Alegre”. E essa demora ele atribui à falta de vontade política. “Acredito que com mais ciclovias, mais educação de trânsito, mais educação da população pra ver que a bicicleta não é atrapalha o deslocamento, Porto Alegre seria a capital das ciclovias no Brasil, porque tem muita gente que pensa dessa forma. São essas pessoas que estão faltando dentro da política. Teria que ter alguém na política que se comprometesse e levasse essa bandeira até o fim, mas infelizmente, hoje não tem.”
Para ele, o plano diretor, que consiste em 495 quilômetros de ciclovia , é impossível de acontecer. A associação fez um estudo e chegou a conclusão que com os 150 quilômetros já seria possível ligar todos os bairros pelas principais vias. “Talvez desse uma volta maior porque não ia existir aquela ciclovia pra cortar o caminho, mas tu conseguiria sair da zona sul à zona norte somente por ciclovias e isso daria 100% de segurança. Com certeza iria incentivar as pessoas a tirar a bicicleta da garagem e começar a pedalar, ir pro seu serviço, pra sua escola, pra faculdade ou ir no centro comprar alguma coisa, entregar um DVD. Enfim, fazer quase tudo de bicicleta, o que já acontece em muitos países da Europa.”
Muito além de uma infra-estrutura, uma mudança de atitude
Jaime acredita que a falta de infra-estrutura não é o maior empecilho para que a pessoas se tornem usuárias da bicicleta. “Vejo as ciclovias criadas e não utilizadas nos dias reservados aos ciclistas. O que vejo em meu condomínio são algumas bicicletas atiradas e esquecidas no fundo dos boxes, sem utilização pelos proprietários, que para ir à esquina utilizam o automóvel. As crianças utilizam as bicicletas dentro do condomínio. Há necessidade de mudança na maneira de pensar e nos hábitos dos Porto-alegrenses.”
Para o presidente da ACZS, as pessoas precisam refletir sobre qual futuro desejam para a cidade. “Eu acredito que a bicicleta estando na mídia ajuda as pessoas a pelo menos se perguntar se o que estão fazendo é legal, se cada um na casa ter um carro é sustentável. Vai fazer com que as pessoas pensem a respeito de trocar o seu modal. Porque daqui a pouco Porto Alegre vai estar entupida como São Paulo, as pessoas precisam pensar nisso”.
A mudança cultural daqueles que compartilham o trânsito com o ciclista é essencial. Marcos, da Pedala Express, lembra que a pessoa que está pedalando se encontra mais vulnerável em relação ao ambiente externo e é preciso que haja respeito dos usuários de outros modais de transporte. “ Quanto maior é o seu veículo, maior é a sua responsabilidade. Mas esse pensamento não entra na cabeça das pessoas, elas acham que quanto maior o seu veículo, maior o seu poder de persuasão no trânsito e isso está às avessas”. Paulo ressalta: “O motorista tem que aprender a olhar um ciclista. Não adianta só ciclovia e o pessoal continuar ignorante no trânsito, porque no trecho que não tiver vão tentar te fechar, e sempre quem vai levar a pior, mesmo estando certo, é o ciclista, o mais frágil.”
A necessidade de transformação também é urgente por parte de muitos ciclistas. Conhecer os seus deveres dentro do Código Brasileiro de Trânsito é de vital importância para que possam ser respeitados e para evitar acidentes. A inserção da educação por parte dos agentes da EPTC quando se inaugura uma nova ciclovia não pode ser dispensada. “ O ciclista tem que saber que não pode andar na contramão, que precisa respeitar o sinal vermelho,andar próximo ao meio-fio, com capacete, refletores, roupas coloridas para chamar atenção”, salienta Paulo.
O problema da mobilidade urbana, lembra ele, não vai ser resolvido apenas com o fomento ao ciclismo. O prejuízo anual de Porto Alegre com os engarrafamentos é de cerca de 30 milhões de reais, de acordo com a pesquisa da Fundação Dom Cabral do ano passado. A bicicleta é uma alternativa, mas nem sempre a mais viável, por exemplo, quando se pensa em longas distâncias ou em dias de chuva. “É óbvio que precisaria ter um transporte público bom, com bastante ônibus. Todos os dias pegar um ônibus lotado também faz com que tu queira um carro. Ter mais ônibus e mais lotação, acredito que melhoraria bastante e faria com que as pessoas largassem um pouco o carro em casa e utilizassem o transporte público ou a própria bicicleta.”
Com a construção de ciclovias seguras e o incentivo ao uso da bicicleta através da educação para o trânsito e da educação ambiental será possível buscar uma sociedade mais sustentável. Se o número de pessoas que usam esse transporte alternativo aumentar, haverá a diminuição da poluição atmosférica, menos congestionamentos e acidentes graves envolvendo os ciclistas. Mas Paulo, que é também professor de Educação Física, afirma que a bicicleta ainda pode ajudar a melhorar a qualidade de vida e a saúde. Ele salienta que o ciclista é menos estressado. Além disso, ir ao trabalho pedalando, faz com que a pessoa já chegue com o sistema circulatório ativado. O exercício combate ainda a obesidade, proporciona uma melhora cardiovascular e pode até funcionar como fisioterapia.
O arquiteto Régulo acredita que o maior benefício ao oferecer a infra-estrutura para os porto alegrenses poderem optar pela bicicleta é construir uma cidade mais humana. “O objetivo é buscar uma cidade mais sustentável, uma cidade melhor de estar na rua. Muito em função de trânsito ruim, da violência urbana e das próprias condições urbanas, como calçadas ruins de caminhar, nós estamos nos transformando na cidade do automóvel. As cidades crescem, fazem cada vez mais ruas, e cada vez a gente tem que ir mais longe porque não é bom de caminhar e quanto menos gente fica na rua, mais perigosa ela fica. O benefício maior é ter uma cidade boa de viver, uma cidade que seja boa de andar de bicicleta, de caminhar”.
O contato com a paisagem e a observação da natureza é muito maior quando se está de bicicleta do que quando se está dentro de um carro, afirma o presidente da ACZS. “É diferente fazer um passeio de automóvel ou de ônibus, que vai muito mais rápido e não consegue parar. De bicicleta tu para, olha a paisagem, ela te proporciona o contato físico, o contato mais humano, tanto com as próprias pessoas quanto com a paisagem.”